Por Nilson Lattari *           

          De repente, ao atravessar a rua, me deparei com um bueiro. Pensei, imediatamente, como seria se o meu celular caísse dentro dele? Estatelado, próximo de uma poça de água. Seria o fim, imediatamente. Instintivamente, apalpei o bolso e lá estava ele, realçado sob o tecido da calça. Aquela alguma coisa angustiante permanecia. Um bueiro, uma boca de lobo (na verdade nunca entendi o sentido). Mas seria uma boca de lobo por ter engolido meu celular.

            Lá dentro, o celular sozinho vibraria com a ligação da Lucinha, ou do marceneiro, que enrolava dias e dias para a confecção do armário, da faxineira que o Miltinho prometera, que era amiga da amiga do porteiro do prédio onde a namorada dele morava. Todos, incomparavelmente, separados pela grade, que lembraria uma prisão, de um simples bueiro na beira da rua. Um bueiro a me separar da conectividade global.

            Naturalmente, pela posição em relação à calçada, a tampa do bueiro poderia ser removida e o celular retirado. Mas o que as pessoas pensariam: vejam um ladrão de bueiros, vai vender no ferro-velho, aliás, alguém já viu um ladrão de bueiros? Pois existem, haja vista alguns que estão destampados, buracos abertos.

            Daquelas falsas aberturas gradeadas, de repente o celular toca. Do alto não dá para identificar a chamada, e o desespero vai tomando conta de mim. O som bem escolhido torna o bueiro um estranho alto-falante. Um som saído da penumbra eterna e mal cheirosa.

            Um carro resolve estacionar exatamente em cima do bueiro. Alguém resolve lavar a calçada e apesar dos meus protestos veementes, a água é empurrada com convicção na direção do bueiro, conectado por um declive proposital, levando uma enxurrada rumo a minha alma tecnológica. Aquele exército de ocupação e ataque mira diretamente o celular, filho perdido, cujo pai atraca-se ao cabo da vassoura. Já houve tempo em que o celular não existia e as pessoas não se comunicavam tanto e não tinham pelo brinquedinho tal importância, blá, blá, blá. E daí?

            Vai daí, o desespero em prol daquele ente, do celular que, dentre outras coisas, telefona, faz parte da minha vida, um confessor, psicólogo, jamais poderia ficar inerte e operante parcial dentro de um bueiro, soltando sons alegres, diante do fato consumado de estar dentro de um buraco errado na hora errada. De repente não ter mais agenda, amigos, endereços, saber a hora instantaneamente, o aviso da hora do remédio, do compromisso agendado há três meses na maravilhosa tecnologia, a gravação da voz amada, a foto que poderia ser tirada, quem sabe privado de um magistral momento do cotidiano, poder vender para o jornal o vídeo, a foto daquele artista, a perda de um momento de autógrafo, corroborado pela foto, o e-mail que poderia ter passado etc.

            Mas o bueiro poderia não dar a tarefa fácil de entregar com facilidade sua tampa à sanha de qualquer um que queira retirá-la. Até pelos próprios roubos, a tarefa não deve ter um final tão feliz. Imagino-me agachado, com as costas e a coluna expostas a tentar tirar a tampa do bueiro para resgate do aparelhinho. Pescá-lo? Nem pensar! Imagine alguma coisa que possa capturá-lo no exato instante em que uma ligação é feita, e ele, o celular, a pular como o peixe fisgado, usando tenazmente o seu vibrador.

            Algum transeunte oferece o chiclete, fresquinho no ato de mascar, que poderia grudar no aparelho e resgatá-lo. Mas alguém teria um objeto pontudo, contundente, que possa ter anexo um chiclete já mascado e grudento? Já era demais, afinal passar um chiclete já mascado e utilizável… nele?

            Um suor frio já percorre o corpo e a imaginação já agita a realidade. Apalpadela no bolso e lá está ele. Quieto, no seu lugar, como um animalzinho de estimação, dócil, junto ao dono, pronto a gritar o alerta de visitante chegando.

            Bom mesmo é não passar perto de bueiros, atender às ligações em locais fechados com boa segurança. Um celular vive peripécias aos borbotões. Quedas em vasos sanitários, alguns sendo abandonados pela infidelidade, outros não, levados ainda com vida para resgate na mais próxima assistência técnica, outro, possivelmente, em bueiros. O protesto inconformado com a assistência técnica que prevê uma demorada ousada para a entrega do aparelho querido. Como eu viveria sem ele? Minha vida está toda ali!

            Um amigo me contou que ao cair de suas mãos o pequeno aparelho se desfez em pedaços. O inusitado é que o acidente se dera dentro de um ambiente com máquinas de auto-atendimento de um banco. Pois não é que a pequena bateria escorregou para dentro da parte interna do atendimento? Sem pensar, o proprietário pulou o tapume para o resgate de sua bateria. Os clientes espantados ao entrarem e vendo a atitude suspeita do cliente acionaram a polícia mais próxima. Ao voltar, o proprietário foi inquirido pelo que fazia. Ele, triunfante, exibiu a bateria de seu celular, resgatado e montado diante das autoridades. Perplexas, possíveis enquadramentos, e o caso se cercou de outras histórias sobre ocorridos com celulares, esses seres viventes e autores de peripécias. E as pessoas descobrem que têm algo em comum.       Algumas vezes companheiros de padecimento dentro de elevadores, inoperantes ao sinal, ou imunes aos 0800.

            Finalmente ele toca e a faxineira, recomendada pelo amigo do amigo, não trabalha mais, arrumou um emprego em um call-center. Mais uma candidata a nos importunar. Quanto à Lucinha e ao marceneiro, quem sabe?

 

* Nilson Lattari, colunista e colaborador voluntário na Folha da Praia Online, é graduado em Literatura pela UERJ, especializado em Estudos Literários pela UFJF. Foi o primeiro colocado em crônicas no Prêmio UFF de Literatura, 2011 e 2014, e terceiro colocado em contos pelo mesmo prêmio em 2009. Primeiro colocado em crônicas prêmio Darcy Ribeiro – Ribeirão Preto, 2014. Finalista em livro de contos Prêmio SESC de Literatura 2013, finalista em romance Prêmio Rio de Literatura, 2016, além de várias menções honrosas em contos, crônicas e poesias.

 

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